Este artigo propõe uma análise técnico-jurídica do inquérito policial instaurado contra o artista conhecido como ORUAM. O objetivo não é emitir juízo de valor sobre a conduta do investigado, mas sim avaliar se há vícios que comprometem a legalidade do processo, especialmente sob a ótica do devido processo legal, da competência territorial e da jurisprudência constitucional.

A investigação, instaurada pela Delegacia de Repressão a Entorpecentes do Rio de Janeiro (DRE-RJ), levanta questões processuais relevantes, inclusive quanto à nulidade de origem, violação ao princípio do juiz natural e potencial configuração de “fishing expedition” pescaria probatória, prática vedada pela jurisprudência do STJ.

Quem é o investigado

ORUAM, nome artístico de Mauro Davi dos Santos Nepomuceno, é um artista da cena musical periférica, com projeção internacional e mais de 10 milhões de ouvintes mensais nas plataformas digitais. O caso ganhou notoriedade por envolver uma figura pública, mas a análise aqui se restringe aos aspectos legais.

No dia 22 de setembro, o rapper Mauro Davi dos Santos Nepomuceno (ORUAM) publicou um vídeo em suas redes sociais informando que irá se entregar à polícia após mandado de prisão temporária expedido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

“A todos vocês que gostam de mim: vou me entregar, tropa. Não sou bandido, valeu? (...) Desculpa todo mundo, que eu errei, vocês acham que eu errei, vou me entregar para provar a vocês que não sou bandido e vou dar a volta por cima.”

Trecho em vídeo publicado no canal oficial do Terra Notícias no YouTube.
  • Dia 1: O artista participa de um ato público contra a violência policial.

  • Dia 3: Um vídeo circula em redes sociais com supostos disparos de arma de fogo em São Paulo.

  • Dia 5: A DRE-RJ instaura inquérito para apurar fato ocorrido fora da sua circunscrição.

Esse encadeamento temporal, aliado à atuação de uma delegacia sem atribuição legal, já levanta a necessidade de análise da competência territorial.

Competência territorial e princípio do juiz natural

O inquérito policial foi instaurado por autoridade policial no estado do Rio de Janeiro, apesar do fato investigado — caso realmente existente — ter ocorrido, segundo o próprio vídeo citado, em Igaratá, interior de São Paulo.

A Constituição Federal, no artigo 5º, inciso LIII, determina que:

“Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente.”

Esse dispositivo consagra o princípio do juiz natural, que se estende ao campo da investigação preliminar, conforme já reconhecido pela jurisprudência do STJ.

A portaria que deu origem ao inquérito afirma que o fato ocorreu "na circunscrição desta Delegacia", o que, segundo a perícia oficial e os autos, não é verdadeiro. Essa falsidade fere a legalidade do ato inaugural e pode configurar nulidade absoluta por incompetência de origem.

Nulidade de origem: efeitos jurídicos

De acordo com o Código de Processo Penal, artigo 564, inciso I, os atos processuais são nulos quando praticados por autoridade incompetente. A doutrina majoritária e o STJ entendem que a incompetência manifesta na fase de investigação contamina todos os atos subsequentes, mesmo que não haja demonstração de prejuízo direto (teoria da nulidade absoluta).

Portanto, qualquer medida cautelar derivada desse inquérito, como mandado de busca e apreensão, pode ser considerada nula de pleno direito.

Busca e apreensão e a vedação à “fishing expedition”

Outro ponto técnico relevante é a natureza do mandado de busca e apreensão executado no domicílio do investigado, no Rio de Janeiro. A justificativa para a busca se baseava na investigação de um disparo de arma de fogo, porém os itens apreendidos foram:

  • 11 cordões dourados

  • 4 próteses dentárias

  • Uma carta lacrada

  • Celulares de terceiros

Essa prática se aproxima do que a jurisprudência denomina de “fishing expedition”, uma busca genérica sem objeto específico, com o objetivo de encontrar qualquer elemento que possa incriminar o investigado.

O STJ, no RHC 123.534/PR, já decidiu que:

“A realização de busca domiciliar sem individualização concreta do objeto procurado configura devassa à vida privada e é vedada pelo ordenamento jurídico.”

A ausência de nexo entre o objeto da busca e os itens apreendidos pode configurar violação ao princípio da proporcionalidade e da inviolabilidade domiciliar (CF, art. 5º, XI).

Seletividade penal: abordagem técnico-dogmática

Embora o artigo não tenha viés ideológico, é necessário observar que o caso apresenta indícios de seletividade penal, conceito técnico que descreve a aplicação desigual da lei penal com base em fatores extralegais.

A doutrina penal moderna reconhece que a seletividade pode ocorrer tanto na persecução penal quanto nas decisões judiciais, configurando uma disfunção sistêmica. No caso concreto, a escolha da DRE-RJ para apurar disparos de arma — sem qualquer relação com entorpecentes — pode indicar desvio de finalidade investigativa.

Potencial precedente perigoso

A manutenção da validade desse inquérito, apesar dos vícios apontados, pode abrir precedente para:

  • Investigações instauradas por autoridades manifestamente incompetentes

  • Falsificação de dados para fins de atribuição territorial

  • Busca e apreensão sem delimitação clara

  • Generalização da prática de “fishing expedition” como ferramenta de persecução penal

Esses riscos não são apenas teóricos — afetam o equilíbrio do Estado de Direito e a credibilidade das instituições jurídicas.

Situação atual e desdobramentos

O caso encontra-se em análise no Superior Tribunal de Justiça, por meio do Habeas Corpus nº 1024610/SP. A defesa requer:

  • Reconhecimento da incompetência territorial

  • Nulidade de todos os atos processuais subsequentes

  • Trancamento do inquérito

O julgamento desse HC pode ter efeitos paradigmáticos, não apenas para o investigado, mas para a jurisprudência nacional.

Considerações finais

Este artigo não pretende advogar causas individuais, mas sim demonstrar, com base técnica, que:

  1. A instauração do inquérito por autoridade incompetente viola o princípio do juiz natural.

  2. O mandado de busca teve natureza genérica e potencialmente ilegal.

  3. A legalidade dos atos subsequentes está comprometida pela nulidade de origem.

  4. O caso exige atenção da comunidade jurídica para evitar a normalização de práticas incompatíveis com o processo penal constitucional.

Relatório técnico completo

O relatório produzido pelo Inova by Tigre, com apoio de inteligência artificial jurídica, traz uma análise detalhada dos vícios processuais neste caso, incluindo:

  • Mapeamento da cadeia de ilegalidades

  • Jurisprudência correlata

  • Propostas de correção à luz do devido processo legal


📩 Contato para imprensa e esclarecimentos: [email protected]

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